Monday, September 10, 2007

RICARDO PIRES DE SOUZA


mencionado por:
Mariana Ianelli

menciona a:
Beatriz Helena Ramos Amaral
Sérgio Alcides
Patrícia Burrowes
Fernando Alves



poemas


A Ilha de São Brandão

iv

Os negros amontoados nos porões destes navios
Universais se perguntam: Quem somos nós?
O que somos nós? De dentro de suas percepções
Ecoa um abismo aquático para fora daquelas paredes
De madeira negra. Quem sou senão madeira enegrecida
Revestiva por algas verde-azuladas por fora e urina
De escravos negros por dentro? Alma-pássaro
Que não tem existência a não ser em mim mesmo,
Mônada espiritual que vai e que volta
Numa compreensão pequena, quase nenhuma.

Nenhuma compreensão dos navios de Rugendas
Existe na morte, pois a morte não existe, oferta
De desconhecimento, vertiginoso rumor de lamentos
De homens-propriedade, exilados da compaixão
E da tolerância perpétuas.

Dessa raça melanésia há de nascer a Ausência,
A ausência do tempo, do espaço, da manifestação.
Enquanto os filhos dos filisteus fazem contas,
Os deserdados de si chegam ao fim de suas carências,
Cálices cheios de minutos impuros que atravessam
Os oceanos geradores das Dores de Deus.

Padre Fray Francisco Ximenez, da Ordem de Santo
Domingo, dai-me leite, dai-me um caudal de índios
E negros miseráveis e inesquecíveis em sua independência
Perdida, em suas lendas e deuses quase perdidos.
Dai-me a transcrição dessa história de desvalidos,
Dessa linhagem de almas pagãs, salvas pela bondade
E pela felicidade dos Conquistadores e dos Reis dos Mares.

Repouso sobre o convés daquele vaso de relações
Inumanas, tranqüilo, pois sou o avô do dia, joalheiro
De pingentes de homens presos a correntes de lástimas.
Sentado sobre a amurada observo acima as estrelas
Humildes brilharem, pedras preciosas, por sobre os ébanos
De esplendor guardados no porão, metais preciosos
Recostados, ombro a ombro, nas alegorias do sono
E da morte.

Me seguro na viga-mestra para não deixar cair ao mar
Estes versos que nem Camões ou Castro Alves aprovariam,
Segmentações de um texto muito mais extraordinário
Chamado “Navio Negreiro”. Os mensageiros de Deus
Com suas cruzes de malta ornaram-se de fados e flechas,
De carícias de açoites e da chave-mestra que abre
Todos os cadeados, inclusive o da alma.

A brisa agita a cápsula em que eu, o Homem da Lua,
Me mumifico, esperando, obediente e órfão, as vibrações
Dos albatrozes dizendo: cheguei! Sou autopercepção,
Autogeração, filho de negros escravos, mal maior
Aos triplos, aos quádruplos, começando nas savanas
Imaculadas e terminando nos areais do Brasil.


Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.





São Paulo pela Manhã

viii

Os edifícios cinzentos se implantam nas ruas
De um lado e de outro, detonando a paisagem.
Se ao menos as pessoas comuns pudessem ver,
Como eu vejo, a alma dessas construções, talvez
Eu me sentisse um pouco menos sozinho. Para elas
São apenas prédios, tijolos, concreto, vidro, portas,
Janelas, onde elas mesmas habitam, trabalham,
Se amam, e, eventualmente, de onde se atiram,
Pondo um fim em suas vidas insones. Mas qual
Fim? Posso continuar a vê-las transitando vaidosas
Dentro e fora desses lugares todos, como espectros
Indestrutíveis. Na verdade, vejo os resíduos despidos
Que vivos e mortos costumam deixar quando passam,
Suas pobres emoções derramadas, seus pensamentos
Abruptos e a energia vital dos seus corpos. Todos
Esses alentos de vivos e mortos, juntos, compõem
A alma dos edifícios com os quais convivo.

As ruas, igualmente, têm também almas,
Mais voláteis e oscilantes, porém, ainda assim
É possível lidar com elas, as almas das ruas.
Saltam dos bueiros e das bocas-de-lobo emanações
Imprecisas que me recontam histórias remotas.
Não sei dizer se se referem a fatos reais ou são
Simples imaginações dessas sombras exóticas
Que subsistem nos subterrâneos das cidades
Que habito. Imagino quantos extratos de vivências
Sepultadas se sobrepõem nos quase quinhentos
Anos da cidade de São Paulo ou nos mais
De mil anos de Vladimir e Suzdal.

Presto muita atenção neste movimento sempiterno
Que – onde os homens e mulheres se juntam – acumula
Saliências sobre saliências de ânsias caladas e as enterra,
Construindo sobre elas novas casas de paixões nebulosas,
Que os tolos arqueólogos pobremente chamam de Tróia I,
Tróia II, Tróia III, Tróia IV, Hastinapura..., Rio de Janeiro...,
Knossos..., Nippur..., Nínive I, II, III, e assim por diante.
Todas essas cidades colecionam os ardores seminais
Dos seus filhos, vivos ou mortos, ou apenas indecisos,
E os incorporam à sua própria personalidade, às paredes
De suas construções, ao asfalto de suas avenidas,
Ao semblante dos seus monumentos. Em Florença,
David observa os assíduos idosos alimentarem
Os pombos que, embora ninguém perceba, são
Os mesmos há centenas de anos. Em Atenas algum
Livre-pensador ainda lê o pseudo-aristocrático Homero
E reluz, deixando resíduos de protomatéria espalhados
Ao redor de si mesmo, alimento de seres superetéreos
Que não podem ler, mas podem sentir e sofrer. De Meca
E Medina emana uma plenitude de santidade que limpa
As almas, mesmo as que nunca puderam nem poderão
Entrar lá. Nas Américas, em todas as aglomerações
Emprestadas, os mártires da colonização ainda se erguem,
Vivos ou mortos, para contar aos seus filhos mestiços
Sobre como o que é bom e o que é mau se transformam
E se confundem, partículas de princípios e argumentos
Que constantemente se reorganizam em éticas novas.

As almas de cada cidade, de cada rua, de cada minarete,
De cada casa, murmuram melodias de impiedade
E paixão, desmoronamento e esperança, e desejam
Avidamente – eu sinto – os meus e os seus resíduos de vida
Para ajudar a compor as fundações da Alma do Mundo.


Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.




Memórias

iii

Semanas atrás desenterrei meus mortos,
Com suas máscaras de malaquita, ágata, lápis-lázuli,
Rosas destacadas de suas faces pequenas a me fitar
Aliviadas. Reinventei uma ampulheta que lhes medisse
Uma forma de tempo diverso, no qual as despedidas
Fossem filhas do Nascente – líricas e consoladoras –
E o Poente despejasse multidões de borboletas
E um tiê-sangue assustado com as celebrações da Terra.
Em troca, meus mortos me falaram do Desconhecido.
Meu pai lançou sua língua de cimento e luto
E me contou sobre um lugar onde sempre é outono
E sempre meio-dia. Meio-dia ininterrupto e cinza
Que mantém sulfúrea a ferida e no qual não há vinho
Para a garganta. Manola subiu gargalhando pela torre
Da catedral e esvaiu-se, inspirando profundamente
Três vezes e desaprendendo a ser gente. Minha avó
Gotejou uma desdita trêmula e triste e foi logo
Arrumar o jantar. Meu avô me abraçou uma única
Vez, num amplexo que já dura desde sempre.

Reencontro meus mortos em suas posturas inertes,
Hugo, Cortázar, Cellini, Mário, Wilde, Dalí, Pound,
Dvörak, Einstein, Neruda, Whitman, Plotino, de Leon,
Bandeira, Goethe, Tolstói, El Bosco, Rosa, Mistral,
Eliot, Picasso, Nijinsky, Steiner, Confúcio, Spinoza,
Darwin, van Gogh, Kant, Leibnitz, Campbell,
Hipócrates, Cèzanne, Maquiavelli, Foucault, Durant,
Mishima, Cecília, Arcimboldo, Lennon, Hamsum, Poe,
Hesse, Pagannini, Avicena, Cunha, Michelangelo,
Stevens, Reich e tantos outros que não identifico,
Na bruma da minha desolação. Seus suspiros,
Através de meus sentidos, entram, como jardineiros
Ingênuos plantando lantanas nas cercanias dos cárceres.
Suas pegadas levam a esconderijos para além
Das transitoriedades, onde o umbigo da vida prende
Os seus cordões a um único elo, engenhoso modo
De mantê-los intactos, desagüando num braço
De mar de minha morada. Todos caminham
Comigo todo o tempo. Me habituo a eles, à saudade
Que me empurra para crateras em mim, abertas
Pela emoção. Cultuo suas geometrias. Meus mortos
Não me julgam, crêem que sou seu herdeiro
Dileto, fugitivo, como eles, da noção da verdade.

Ricardo Pires de Souza, Anima Mundi, Ateliê Editorial, 2004.





bio/biblio:

Ricardo Pires de Souza, 45 anos, pai do João Ricardo e do Lucas, médico radiologista, doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo, analista junguiano, autor de “Anima Mundi”, pela Ateliê Editorial. “A Dança de Shiva” está em processo de publicação, também pela Ateliê. Embora goste da minha profissão, se pudesse (acho que como a maioria dos poetas), viveria somente para escrever.




poética:

Mas somente o poema pode perguntar: que sou eu?

Posso repetir inúmeras vezes esta mesma pergunta
E chamar isso poema.


O Peregrino, Anima Mundi, Ricardo Pires de Souza, Ateliê Editorial, 2004.



5 comments:

Anonymous said...

Caro Ricardo,
gostei deveras de seus poemas.
Longos, com muito a nos dizer e ensinar.
Como conseguir comprar o livro seu?
Também escrevo poemas e, se quiser, entre em contato.
email: avecesarjf@yahoo.com.br

Poesia said...

Tenha certeza que você já tem um fã, ainda que seja apenas por internet. Gostei. Posso colocar um para seu blog em minha página? Abraços.

Anonymous said...

Sou suspeita para falar do Dr. Ricardo profissional, do Ricardo amigo, do Ricardo escritor e poeta, de quem honradamente ganhei um exemplar autografado, do Ricardo pai de dois meninos maravilhosos. Mas por conhecê-lo em tantos aspectos, posso dizer: Eu o amo! Né, chefe?
Témis Vecchiatto

Anonymous said...

Caro Ricardo,parebens pelo belo livro.
Me chamo Regina. Sou filha de Tereza, irmã de Ricardo seu pai. Resido em João Pessoa,tenho 48 anos e sou professora universitária. Atualmente realizo um doutorado na USP-São Paulo. Nossa família esta muito contente em ter te reencontrado. Um abraço. Regina

Anonymous said...

Ric, ainda não me esquecí daqueles versos que vc escrevia em sua escrivaninha para sua mãe. Lindo!kelevidanova@hotmail.com