Tuesday, August 22, 2006

ARMANDO FREITAS FILHO


foto: J. Carlos Horta

mencionado por:
Eucanaã Ferraz
Paula Padilha
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Poemas: (todos de Raro mar)
OUTRA RECEITA

Da linguagem, o que flutua
ao contrário do feijão à João
é o que se quer aqui, escrevível:
o conserto das palavras, não só
o resultado final da oficina
mas o ruído discreto e breve
o rumor de rosca, a relojoaria
do dia e do sentido se fazendo
sem hora para acabar, interminável
sem acalmar a mesa, sem o clic
final, onde se admite tudo –
o eco, o feno, a palha, o leve –
até para efeito de contraste
para fazer do peso – pesadelo.
E em vez de pedra quebra-dente
para manter a atenção de quem lê
como isca, como risco, a ameaça
do que está no ar, iminente.


EMULAÇÃO

Sua morte empurrou minha mão.
Sua mão pesa sobre a minha
e a faz escrever com ela
não como luva de outra pele
mas como enxerto de outra carne
emperrada, como a vida dela
que parou, e vai apodrecendo
dentro da minha, suando suor igual.


LIMPO E SECO

Mão pesada, apesar da advertência.
Não toque assim, diante do leitor
que hesita em ler na sua página
a matéria até agora em convulsão.

Embora amor, deixe que amanheça
o gesto que a noite carregou.
Acalme, corrija o coração, a cor
vermelha ainda com muito sangue.

Deixe que o pensamento pare na folha
do dia claro. No verde rigoroso
imaginado, pois daqui, de longe
não dá para calcular o mar.
.
bio/biblio
Armando Freitas Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional, assessor no gabinete da Presidência da Funarte, onde se aposentou.
Poeta édito há 43 anos, publicou os seguintes livros: Palavra, 1963; Dual, 1966; Marca registrada, 1970; De corpo presente, 1975; À mão livre, 1979; Longa vida, 1982; 3X4, 1985; De cor, 1988; Cabeça de homem, 1991; Números anônimos, 1994; Duplo cego, 1997; Fio terra, 2000; Máquina de escrever - poesia reunida e revista, que além dos livros citados acima, se abre com o inédito, Numeral/Nominal.
Recebeu, em 1986, com o livro 3X4, o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, e em 2000, com o livro Fio terra, o prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. Em 2001, ganhou a Bolsa Vitae de Artes.
Este ano lança, Raro mar, seu novo livro de poemas.
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"SOU TODO OUVIDOS, OLHO, NARIZ , BOCA E MÃO"

I

Em julho de 2006, completei 43 anos de poesia editada em livro. Para o bem e para o mal, meus poemas, ao longo desse tempo, adquiriram características próprias.
Este seria o gume positivo: todo escritor almeja uma identidade. O outro, antagônico, faz com que eu procure negar o determinismo deste corte, trazendo para seu risco novas ramificações, mantendo-o vivo, ferido, irrigado, com alternativas, para evitar que se transforme precocemente numa cicatriz repisada e seca. Ou então, tentar adiar ao máximo esse destino.
A tensão que resulta daí, em virtude da ambigüidade do seu movimento contraditório de permanência e fuga, é sentida mais fortemente na imaginação que antecede o manuscrito, do que quando este reflete aquela. Sobre ela é que me deterei, não sobre ele, objeto da análise de Valéry, na abertura da Exposição Internacional de 1937, em Paris, quando se organizou um mostruário da produção literária na sua intimidade:
“Pensamos, então, em remontar ao instante mais próximo do pensamento, apanhando sobre a mesa do escritor, o documento do primeiro ato de seu esforço intelectual, e como que o gráfico de seus impulsos, de suas variações, de suas repetições, ao mesmo tempo que o registro imediato de seus ritmos pessoais, que são a forma de seu regime de energia viva: o manuscrito original – o lugar em que pousou o seu olhar e sua mão, em que inscreveu, de linha a linha, o duelo do espírito com a linguagem, da sintaxe com esta e aquele, do delírio com a razão, a alternação da espera e da pressa, todo o drama da elaboração de uma obra e da fixação do instável”.
Depois desta citação vejo que minha meta talvez seja inatingível, porque visionária. O que busco não tem apoio de qualquer suporte: é pura subjetividade que não quer objetivar-se. É o desejo in fieri. Não obstante, especulando empiricamente, se acreditamos que os originais de um autor podem nos oferecer toda aquela gama de sensações primais, por que não acreditar que essas sensações possam ser resgatadas e descritas sem a presença deles, antes de serem impressas pela mão e pela máquina?
A subjetividade, ou o psicologismo, reina nos dois ambientes, mas segundo sinto, fica mais a vontade, tem maior credibilidade e trânsito por sua intrínseca natureza e propriedades, no habitat arbitrário, abstrato e ágrafo de onde me exprimo.
Minha poesia, posso observar agora, possui uma constante: o vocabulário é trivial e, não raro, incorpora, estilizadamente, muitos elementos que não fazem parte do universo da escrita literária clássica, mas sim da fala e da publicidade: frases feitas, trocadilhos, duplos-sentidos, ditados, gírias, jargões, marcas registradas. A invasão brusca desses ready-mades orais, mais percussivos que melódicos, altera o tecido e a temperatura do discurso, muda sua marcha e regime ao introduzir síncopes, estranhamentos, desvios, abusando da violência e da velocidade. É, em suma, uma convocação ríspida de vozes, ou o encontro, a colisão e a montagem urgentes de dois ramais de uma só voz: um nobre, interior e menos usado, que lida com a literatura, a arte e a influência, consciente ou não, dos seus repertórios; o outro externo, acoplado a uma escuta, é vulgar e instintivo e capta, ora concentrado, ora distraído, inspirações, dicções do que está no ar, no formato dos media, na largada conversa cotidiana em geral, em seus improvisos coloquiais, às vezes de alta definição, etc.
Sem ironia, a matéria mais rica pode estar no que conspira e transpira a partir deste et cetera que abarca o que não consigo pescar: o que não é carne nem peixe e, que mesmo assim, indefinível, inalcançável e enigmático, alimenta e amplia, clandestinamente, os significados do que se quer dizer.
Sob o aspecto visual, a sensação é a de que armo, num lugar sem mãos, um puzzle, onde as peças quase se encaixam: há sempre alguma coisa que falta ou sobra. O interstício e o excesso são a diferença imprecisa entre intenção e expressão. Procuro não contemporizar com a carência e a abundância, mas jamais consigo preencher ou desbastar de maneira correta. De vez em quando, essas necessidades vivem no paradoxo e se apresentam no mesmo plano – simultâneas – querendo existência plena e idêntica.
A poesia assim pensada não apresenta resultado cabal. As soluções são virtuais e se deixam ver e ouvir através de atmosferas distintas que misturam, aleatoriamente, cálculo e acaso.
Em 1991, escrevi poemas que tratam dessas percepções. Com certeza, não as esgotaram. De qualquer forma, serviram como ensaios para a “fixação do instável”, o que, conceitualmente, e na prática, não é factível e, portanto, mais uma vez, como é natural e desesperador, ele me escapou por entre os dedos. Aí vai o primeiro que deu início à seqüência: assim como este texto, ele demonstra o fracasso de uma ambição que não se realizou:


Quando escrevo já morreu.
À noite, sob luz fria
aparo algumas arestas
do que tinha pontas
e ainda reflexos
insistindo em espetar.
Agora, só a sombra
da mão escritora
empreende a luta
e, luva, se destaca
no conjunto
para que por contraste
o preto e o branco
o vestido e o nu
se enfrentem, absolutos.


II

Mas, se no poema de 1991, o fracasso da ambição de fixar o instável é evidente, agora em 2001, posso diagnosticar que o fracasso também se deu devido a uma composição resignada ao inventário e registro e que, em virtude dessas características, se submetia ao fato consumado, incorporando-o, fazendo dele seu conteúdo, seu tema e não seu problema.
Na minha produção imediatamente posterior, entretanto, o desejo não esmoreceu e apesar de não se organizar através de uma vontade clara foi sendo expresso, aqui e ali: no poema inteiro ou em alguns versos esparsos. Retrospectivamente, vejo que foi sob essa pressão semiconsciente que o livro Duplo cego, de 1997, se abriu em duas divisões: “do ensaio” e “da representação”. Os poemas da primeira parte se não apresentam o movimento completo rumo ao objetivo de flagrar a instabilidade do ato criador, o ir e vir de suas variantes, mostram a contração que começa a absorver essas capacidades.
“Grão” é um exemplo disto:

Toco, instante, início
talvez de uma árvore
que não foi em frente.
Alguma coisa deste lado
insiste, mesmo sem ramais
em sentir o que se passa
no outro
onde cresceu e floriu o rio.
Mas não consegue ouvir tudo
nem ver claro
o que raspa e invade o campo de força
se é não ou sim, se são leões
arremessando contra a presa
ou atividade de índole diversa
sem precisão de imagens
e de trilha sonora – algo alusivo
iludido, oblíquo, contra a parede
algo de alma, ímã e ruína.

Em Numeral / Nominal, livro inédito que abre Máquina de escrever, volume que reúne minha poesia até agora vou perseguir o intento que acredito ser um dos melhores caminhos que a poesia contemporânea pode percorrer ou interrogar: o do poema aberto a todos os ventos da significação, longe dos pré-moldados estéticos, das dicções didáticas, com causa e efeito explícitos, do poema, enfim, com uma taxa de imprevisibilidade maior chegando a surpreender o próprio autor, que, se não perde de vista o seu material, deixa o controle dele cada vez mais remoto.
Como aparece em “3”:




Reescritor, com o lápis de dentro
sempre se arranhando no rascunho
nos vastos espaços abertos, no cerrado.
Nesse cenário, a imagem de apoio não será:
a de remos idênticos, n’água ao mesmo tempo
cada qual de um lado, copiando-se
em andamento e cadência, paralelos
(ou simultâneos), com igual reflexo
e no meio, por onde se passa, em pensamento
a pé, a possibilidade das duas margens
o trilho do rio que acolhe, intermediário
o centro, o corpo da pedra úmida
que não apanha sol parecendo de sombra
e motor, irradiando o esforço rumo
ao alto mar – parado – sem o corte
do braço do nadador, por exemplo.

Esse meu livro se assemelha – mais na aparência do que na essência - com Duplo cego: no lugar das duas partes deste, “do ensaio” e “da representação”, a poesia de Numeral / Nominal se dividirá por dois instantes, porque pretende apresentar maior correspondência entre eles, sendo menos centrada nos seus respectivos campos. No primeiro, “Numeral”, os poemas, como diz o título, serão numerados compondo uma série mais analógica do que lógica; no segundo, “Nominal”, serão nomeados, sem seriação, factuais.
Os poemas “sem nome” são aqueles que estão “no ar”, os “com nome”, idem. Qual a diferença? A da atmosfera: uma mais rarefeita; outra, ao nível do mar.
João Cabral dizia que quando o poema dele ficava pronto “fazia clic”, como um estojo ao se fechar. Nesse livro se acolherá, também, os que não fazem: os que sustam seu desfecho sem nenhum fecho:


Gritos por dentro
que acabam calados
na boca do céu.
Píncaros! Terrível.
Qualquer palavra que tenha escarpas
sentidos ou ritmos de perfis agudos
de sprinter e sentinela
em arrepiadíssimos despenhadeiros.
Sem luxo.
Sem o encaixe justo da jóia no estojo.

Aliás, a suíte "Numeral" estará presente, doravante, em qualquer livro meu. Será o “instante” sem fim, a série para sempre incompleta.
No mundo de hoje que quer eliminar ou limitar a surpresa dos seus itinerários, essa conquista não é despicienda. A boa arte nasce para descobrir e escrever, nas entrelinhas dos textos artísticos estratificados, o discurso da diferença e do desafio contínuo a si própria. Neste livro novo, Raro mar, que sai em setembro do corrente procurarei chegar o mais perto da fronteira do indeterminado, mesmo sabendo que é quase impossível emparelhar-se com o pretendido. Algo de parecido com o que se passa numa corrida de galgos. Nela, os animais partem à cata da lebre ilusória: um dispositivo, sempre mais veloz que o mais veloz deles, corre à frente envolto pela pele do bicho perseguido. Os cães disparam, movidos pelo olfato, até a linha de chegada. Nunca alcançarão a lebre desejada, mas a caçam, com elegância, tenacidade e fé. Torço para conseguir manter em mim esses impulsos ou virtudes.
Pois o que quero “pegar” com a linguagem, afinal, tem a mesma substância daquilo que os galgos aspiram. E que não é a vitória propriamente, mas a saciedade. O que interessa, pelo menos no plano teórico, é o processo, visto como uma estratégia de busca e apreensão. A tentativa, aqui, vale tanto quanto o tento; talvez porque tenho o entendimento que os galgos não possuem: a de pensar e esperar que um dia a engrenagem que leva o cheiro da lebre imaginada pode quebrar e parar.
Se assim for, contudo, será isso desejável?
Armando Freitas Filho

2 comments:

Aníbal Cristobo said...

Muito obrigado, Carlito, mas isso tudo nao lhe tira a responsabilidade de estar me devendo seu material... rs... acho legal esse encontro que "as escolhas..." acaba propiciando. (se tal palavra existe em portugues... rs... pelo menos, em portunhol ela é perfeita) Uma coisa do tipo, "vamos nos ver no escolhas e tomamos um suco?"... grande abraço,
a.-

Salga Canhotinha de Ouro said...

Armando, agrada-me ser suspeito para falar de vc e sua datilopoesia com gosto de pedra cotidiana... Estou sumido, mas seu livro vai para onde eu for. Assim como sua amizade.